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 Poesias e textos que tu gostas

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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty12/6/2014, 20:11

~Bem no fundo~

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
[Paulo Leminski]
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty13/6/2014, 10:06

"A lua, cheia, brilhava. Em algum lugar, adiante, encontrava-se a fronteira, essa linha que só nos mapas é visível. Como iremos saber que chegamos, perguntou a mulher, o pai o saberá. Ela compreendeu e não fez mais perguntas. Continuaram a andar, ainda cem metros, ainda dez passos, e de súbito o homem disse, Chegamos, Acabou, sim. Atrás deles uma voz repetiu, Acabou. A mãe do menino amparava pela última vez o filho morto no regaço do seu braço esquerdo, a mão direita segurava ao ombro a pá e a enxada de que os outros se tinham esquecido. Andemos um pouco mais, até àquele freixo, disse o cunhado. Ao longe, numa encosta, distinguiam-se as luzes de uma povoação. Pelo pisar da mula percebia-se que a terra se tornara macia, deveria ser fácil de cavar. Este sítio parece-me bom, disse por fim o homem, a árvore servir-nos-á de sinal para quando viermos trazer lhes umas flores. A mãe do menino deixou cair a enxada e a pá e, suavemente, deitou o filho no chão. Depois, as duas irmãs, com mil cautelas para que não resvalasse, receberam o corpo do pai e, sem esperarem a ajuda do homem que já descia da mula, foram colocá-lo ao lado do neto. A mãe do menino soluçava, repetia monotonamente, Meu filho, meu pai, e a irmã veio e abraçou-se a ela, chorando também e dizendo, Foi melhor assim, foi melhor assim, a vida destes infelizes já não era vida. Ajoelharam-se ambas no chão a prantear os mortos que tinham vindo a enganar a morte. O homem já manejava a enxada, cavava, retirava com a pá a terra solta, e logo voltava a cavar. Para baixo a terra era mais dura, mais compacta, algo pedregosa, só ao cabo de meia hora de trabalho contínuo a cova ganhou profundidade suficiente. Não havia caixão nem mortalha, os corpos descansariam sobre a terra estreme, somente com as roupas que traziam postas. Unindo as forças, o homem e as duas mulheres, ele dentro da cova, elas fora, uma de cada lado, fizeram descer devagar o corpo do velho, elas sustentando-o pelos braços abertos em cruz, ele amparando-o até que tocou o fundo. As mulheres não paravam de chorar, o homem tinha os olhos secos, mas todo ele tremia, como se estivesse atacado de sezões. Ainda faltava o pior. Entre lágrimas e gemidos, o menino foi descido, arrumado ao lado do avô, mas ali não estava bem, um vultozinho pequeno, insignificante, uma vida sem importância, deixado à parte como se não pertencesse à família. Então o homem curvou-se, tomou a criança do chão, deitou-a de bruços sobre o peito do avô, depois os braços deste foram cruzados sobre o corpinho minúsculo, agora sim, já estão acomodados, preparados para o seu descanso, podemos começar a lançar-lhes a terra para cima, com jeito, pouco a pouco, para que ainda possam olhar-nos por algum tempo mais, para que possam despedir-se de nós, ouçamos o que estão dizendo, adeus minhas filhas, adeus meu genro, adeus meus tios, adeus minha mãe. Quando a cova ficou cheia, o homem calcou e alisou a terra para que não se percebesse, se alguém passasse por ali, que havia gente enterrada." 


- José Saramago, in As Intermitências da Morte
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty13/6/2014, 11:04

Dedicatória aos Amigos


"Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora, das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que partilhámos. Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das  vésperas dos finais de semana, dos finais de ano, enfim... do companheirismo vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje não tenho mais tanta certeza disso.
Em breve cada um vai para seu lado, seja pelo destino ou por algum desentendimento, segue a sua vida.
Talvez continuemos a nos encontrar, quem sabe... nas cartas que trocaremos.
Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices... Até que os dias vão passar, meses... anos... até este contacto se tornar cada vez mais raro.
Vamo-nos perder no tempo... Um dia os nossos filhos vão ver as nossas fotografias e perguntarão: "Quem são aquelas pessoas?" Diremos que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto! "Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos da minha vida!" A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente... Quando o nosso grupo estiver incompleto... reunir-nos-emos para um último adeus de um amigo.
E, entre lágrimas abraçar-nos-emos. Então faremos promessas de nos encontrar mais vezes desde aquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para seu lado para continuar a viver a sua vida, isolada do passado.
E perder-nos-emos no tempo... por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes que a tua vida te passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades...
Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!". 




- Fernando Pessoa
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty14/6/2014, 00:46

~Sosseguem. Meus dois canos fumegantes só atiram palavras~

É importante deixar claro que o medo do escuro faz parte do rol de fraquezas de qualquer ser humano dito “normal”. Por isso mesmo, a minha repulsa pelas sombras. Não sou emo, não sou dark, nem sou punk: eu simplesmente despertenço a qualquer modalidade de tribo.

É importante frisar que, apesar de ser uma mulher — criatura elencada com defeitos insolúveis, como menstruar, parir e chorar aos menores esforços — eu posso também odiar, trucidar como o mesmo élan do homem que matou o facínora, ou de um homem-bomba, ou do melhor homem de todos os homens do presidente. Sabia que alguns exércitos já permitem (toleram) que mulheres engrossem as suas fileiras? Hoje em dia, engrossar o caldo em casa é coisa só para as amélias.

É importante que você saiba: eu não sei quem mexeu no seu queijo. Não me leia com esta cara de espanto: os ratos também festejam os entulhos em mim.

É importante que surja no próximo conclave do Vaticano o nome de um Papa minimamente assemelhado ao cidadão comum — o brasileiro comum, por exemplo — cuja fé incomum jamais se abala, mesmo nos momentos mais caóticos do viver, quando então a crença num Ser Superior parece, na verdade, um surto dos mais inferiores. Eu também não sei por que Bento XVI renunciou ao papado. Não se deve esperar toda a verdade, muito menos da parte do alto clero. O último a sair, por favor, apague a luz da sacristia.

É importante que a abertura de novos templos fomente a receita, o balanço patrimonial e o fluxo de caixa das igrejas. Muito mais do que acreditar em dogmas, é preciso compreender que a fé (mais que a matemática) involui em regressão geométrica.

É importante que a métrica nunca mais se intrometa e volte a fazer parte da estrutura de um poema (retroceder, jamais!). Eu sinceramente espero (eu praticamente imploro) que a poesia continue a ser publicada pelo maior número possível de editoras, a despeito do inegável prejuízo financeiro que ela representa. Nunca se sabe quando vamos precisar da lira. Conheço um sujeito que desistiu de tomar raticida com coca-cola depois de ler “Os Estatutos do Homem”, de Thiago de Mello. Ao se depararem com poemas como este, até as ratazanas beberiam os seus goles de humanidade.

É importante que ninguém se sinta diminuído por preferir ficar sozinho. Nadar contra a correnteza pode parecer uma coisa bastante idiota, porém, num mundo com tamanhas incertezas, uma a mais, uma a menos, não faz a menor diferença. Portanto, aceitem o meu isolamento. Melhor que isto: unicamente, para o seu conforto, imaginem que eu esteja apenas passeando com amigos numa gôndola em Veneza.

É importante que a indústria farmacêutica evolua nalguma espécie de silicone neuronal cujo implante através de uma das têmporas permita a injeção de juízo na massa encefálica de homens e mulheres. Urge preencher o tempo vazio e o espaço morto, ao invés dos peitos murchos.

É importante que os velhos jamais se furtem em caducar. Ao que parece, numa situação tão crítica e caótica quanto a velhice, faz-se mister esquecer para não mergulhar na insanidade. Aqueles poucos que insistem acabam reféns de Alzheimer.

É importante conhecer a Alemanha, a França, o Reino Unido, o Caribe e, até mesmo, a Disney (O Mundo da Fantasia). Eu admito: não dá mais pra ficar levando o mundo real tão a sério.

É importante buscar algum grau de importância moral na morte (a importância social parece evidente), além do expurgo e da mera assepsia. Para o equilíbrio ideal das coisas, não seria mais aceitável à humanidade parar de nascer, ao invés de morrer o que se ama? Eis aqui uma pergunta que não se calará nem mesmo após o último suspiro.

É importante dar algum crédito aos fatos desimportantes, como um mentecapto que fala com o vazio. Quem poderá assegurar que ele, na verdade, não esteja falando para olhos e ouvidos de outra dimensão? Você já ouviu falar em vidas paralelas? E em palavras cruzadas? Vou sair pela tangente.

É importante que os trocadilhos sejam usados com parcimônia, em doses homeopáticas, pois, o exagero poderá matar um belo texto em potencial. Agora, a chatura exponencial continua a matar de raiva qualquer leitor mais exigente.

É importante que a minha masculinidade não seja questionada pelo simples fato de eu me fazer passar por uma mulher. Há séculos os homens utilizam este artifício, ao se travestirem em busca da autoafirmação. Posso lhes afirmar, sem nenhum receio: eu não me sinto nem um pouco inadequado ao me deparar com um bebê sugando um seio.

É importante ressaltar os benefícios da fantasia no cotidiano do abilolado homem moderno. O faz-de-conta — assim como a oração e as juras de amor eterno na alcova — é uma ilusão passageira, um quase nada perto do que representa estar lúcido e alerta 16 horas ao dia. Normas, leis, regulamentos, estatutos... Ora, ninguém merece tanta ordem!

É importante falar de tudo ao mesmo tempo, num exercício preguiçoso de se dizer praticamente coisa alguma. Ou seja, confundir os pensamentos faz parte da estratégia de qualquer escritor melindroso, mesmo aqueles mais mal intencionados, como eu, por exemplo. [E.V.]
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty23/7/2014, 19:58

TROVA DO VENTO QUE PASSA

"Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles p'ra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não."

Manuel Alegre (in País de Abril)
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty24/7/2014, 15:07

Chorar é lindo

Chorar é lindo, pois cada lágrima na face
são palavras ditas de um sentimento calado.

Pessoas que mais amamos, são as que mais magoamos
porque queremos que sejam perfeitas,
e esquecemos que são apenas seres humanos.

Nunca diga que esqueceu alguma pessoa, ou um amor.
Diga apenas que consegue falar neles sem chorar,
porque qualquer amor por mais simples que seja,
será sempre inesquecível...

As lágrimas não doem...
O que dói são os motivos que as fazem caírem!
Não deixe de acreditar no amor,
mas certifique-se de estar entregando seu coração
para alguém que dê valor

aos mesmos sentimentos que você dá,
manifeste suas idéias e planos,
para saber se vocês combinam,
e certifique-se de que quando estão juntos
aquele abraço vale mais que qualquer palavra...
(Mario Quintana)
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty24/7/2014, 15:12

Criança

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste,

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

(Cecília Meireles)
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty24/7/2014, 17:10

Lindo o de Cecília Meireles sorrindo Obrigada pela partilha.
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty24/7/2014, 18:16

Poema: Lasciva

Não estou contigo,
Sinto-me em ti,
Estás perdida no sofá da luxúria,
O reduto do prazer bilateral.

Por detrás da máquina fotográfica,
Perdido no meu imaginário:
O meu mundo das fantasias.

Porque te recusas a olhar-me?
Porque não me vês?

Continuas a olhar para o infinito,
Da forma lasciva que te caracteriza,
Pensas-te sozinha:
Estás acompanhada!

Capturo este momento,
Eternizo-te (nos),
Neste momento presente,
Cristalizado até ao infinito.

Porque te recusas a olhar-me (te)?
Porque não me (te) vês?

Por: lisboaPT
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty24/7/2014, 18:31

"Sempre que houver alternativas tenha cuidado. Não opte pelo conveniente, pelo confortavel, pelo respeitável, pelo socialmente aceitável, pelo honroso. Opte pelo que faz o seu coração vibrar. Opte pelo que gostaria de fazer, apesar de todas as consequências." Osho
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty25/7/2014, 01:08

Via Láctea
Olavo Bilac

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" e eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty25/7/2014, 01:15

O Laço e o Abraço

Meu Deus! Como é engraçado!
Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço... uma fita dando voltas.
Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e pronto: está dado o laço.
É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de braço.

É assim que é o laço: um abraço no presente, no cabelo,
no vestido, em qualquer coisa onde o faço.
E quando puxo uma ponta, o que é que acontece? Vai escorregando...
devagarzinho, desmancha, desfaz o abraço.

Solta o presente, o cabelo, fica solto no vestido.
E, na fita, que curioso, não faltou nem um pedaço.
Ah! Então, é assim o amor, a amizade.
Tudo que é sentimento. Como um pedaço de fita.

Enrosca, segura um pouquinho, mas pode se desfazer a qualquer hora,
deixando livre as duas bandas do laço.
Por isso é que se diz: laço afetivo, laço de amizade.
E quando alguém briga, então se diz: romperam-se os laços.

E saem as duas partes, igual meus pedaços de fita, sem perder nenhum pedaço.
Então o amor e a amizade são isso...
Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam.
Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço!

Maria Beatriz Marinho dos Anjos
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty25/7/2014, 03:59

Lindos de mais esses dois últimos que postou, Lyre. Incríveis.


[Anotações de Léo]
Poem de Anne Frank:

“Domingo, 13 de Junho de 1943

Querida Kitty :

O poema que o pai me escreveu para os meus anos

é tão lindo que tens de o conhecer. Depois de um apanhado dos acontecimentos deste ano, prossegue assim:

Como és a mais nova de todos,
Ainda que já bem crescida,
Não é lá muito fácil a tua vida.
Todos pretendem dar-te lições
Mas o que te dão são aflições:
Repara na nossa competência.
Passamos por tudo isso afinal,
E sabemos distinguir entre o bem e o mal.
Assim te falam sem interrupção.
Porque os defeitos próprios
nunca são muito graves
Enquanto que os dos outros são os grandes entraves.
Avisam-te, fazem-te ver...
Como se fosse para teu prazer.
E nós, os pais desta filha querida
Nem sempre podemos dar-te razão
Porque a transigência na vida
É uma forte condição.
O ano que finda
aproveitaste-o bem.
Trabalhaste, leste, aprendeste.
E quase nunca te aborreceste.
No que respeita à roupa, ouço-te perguntar:
O que é que vou usar?
As coisas já não me servem
Os sapatos tanto apertam que me enervam
A saia, a camisa, tudo encolhido.
Reduzido a uma tanga ficou o meu vestido
Dez centímetros que a gente se lembre de crescer
Bastam para em coisa nenhuma se caber.”
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty25/7/2014, 08:57

POEMA PERTO DO FIM

A morte é indolor.
O que dói nela é o nada
que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada
e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve
de não ter sido bom.
E no coração, neve.


© THIAGO DE MELLO
In Faz escuro mas eu canto, 1999,
Bertrand Brasil, 17ª edição.

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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty25/7/2014, 10:02

O que vc postou, Léo, também é lindo.
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty14/9/2014, 16:41

Viva como as flores

Em um antigo mosteiro budista, um jovem monge questiona o mestre: Mestre, como faço para não me aborrecer? Algumas pessoas falam demais, outras são ignorantes, muitas são indiferentes.

Sinto ódio das mentirosas e sofro com as que caluniam.

Pois viva como as flores, orientou o mestre.

E como é viver como as flores? -  Perguntou o discípulo.

Repare nas flores, falou o mestre, apontando os lírios que cresciam no jardim.

Elas nascem no esterco, entretanto, são puras e perfumadas. Extraem, do adubo malcheiroso, tudo que lhes é útil e saudável... mas não permitem que o azedume da terra manche o frescor de suas pétalas.

É justo inquietar-se com as próprias imperfeições, mas não é sábio permitir que os vícios dos outros o perturbem.

Os defeitos deles são deles e não seus.

Se não são seus, não há razão para aborrecimento.

Exercite, pois, a virtude de rejeitar todo mal que vem de fora.

Isso é viver como as flores.

Numa simples orientação, sem dúvida, uma grande e nobre lição de bem-viver.

Mas, para viver como as flores, é preciso, ainda, observar outras características que elas nos oferecem como exemplo.

Importante notar que nem todas as flores têm facilidades, mas todas têm algo em comum: florescem onde foram plantadas.

Seja em terreno hostil, em meio a pedregulhos ou em jardins tecnicamente bem cuidados, as flores surgem para perfumar e embelezar a vida.

Existem as flores heroínas, que precisam lutar com valentia por um lugar ao sol. São aquelas que surgem em minúsculas frinchas, abertas em calçadas ou muros de concreto.

Precisam encontrar, com firmeza e determinação, um espaço para brotar, crescer e florescer.

Há flores, cujas sementes ficam sob o solo escaldante do deserto por muitos anos, esperando que um dia as gotas da chuva tornem possível emergir...

E, então, surgem, por poucos dias, só para espalhar seu perfume e lançar ao solo novas sementes, que germinarão e florescerão ao seu tempo.

Em campos cobertos de neve, há flores esperando que o sol da primavera derreta o gelo para despertar de sua letargia e colorir a paisagem, em exuberância de cores e perfumes.

Ah! Como as flores sabem executar com maestria a missão que o Criador lhes confia!

Existem, ainda, flores resignadas, que se imolam na tentativa de tornar menos tristes as cerimônias fúnebres dos seres humanos... enfeitando coroas sem vida.

Viver como as flores, portanto, é muito mais do que saber retirar vida, beleza e perfume, do estrume...

É mais do que florescer em desertos áridos e em terrenos inóspitos...

É mais do que buscar um lugar ao sol, estando numa cova escura sob o concreto espesso...

É mais do que suportar a poda e responder com mais vida e mais exuberância...

Viver como as flores é entender e executar a missão que cabe a você, a mais bela e valorosa criatura de Deus, para quem todas as flores foram criadas...

*   *   *

As flores são uma das mais belas e delicadas formas de expressão do Divino Artista da natureza.

Parece mesmo que o Criador as projetou e as colocou no mundo para nos falar da grandeza do Seu amor por nós, e também como lições silenciosas a nos mostrar como florescer e frutificar, apesar de todos os obstáculos da caminhada...

         Pense nisso, e imite as flores!
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty14/9/2014, 17:36

Belo texto, Elemento Neutro!

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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty14/9/2014, 22:10

Também gostei muito desse texto, Elemento!  eu te amo
Fez-me lembrar este do Eça de Queirós, que já há muito tempo que queria meter aqui mas por ser tão grande, ainda não o tinha feito. 

O texto a seguir é grande, eu sei, mas na minha opinião vale mesmo a pena! sorrindo 


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Os mortos


Ontem foi o dia dos mortos. Os mortos são felizes. Enquanto nas dolentes celebrações da Igreja, ao pé dos altares luzentes, diante de Jesus roxo e descarnado, os tristes e os simples rezam pelos seus queridos mortos, eles andam dispersos pela grande natureza, pelas florestas esguelhadas, pelas espessuras sonoras, pelas uberdades da seiva, pelos sulcos fecundos, por todas as verduras d’acre cheiro.

A sua carne sofreu, empalideceu com os medos, emagreceu com as febres, engenhou-se com os frios; mas agora anda, repousada e sã, pelas frescas vegetações, pelos frutos coloridos, na luz selvagem e vital do sol, nos átomos da noite constelada e suave.

Os que morreram nos apodrecimentos das febres desfizeram-se no seio da terra planturosa, foram sugados pelas raízes e, confundidos com a seiva vêm outra vez para o sol, em forma de frutos, de corolas, de ramagens ondulosas. 

Os que morreram sobre as águas do mar desfazem-se entre as verdes profundidades, entre as areias, os corais, as conchas, os rochedos, e vêm depois, sob a forma d’ondas, embalar-se serenos ao sol, ou de noite estirar-se ao peso da moleza que escorre dos astros, ou de madrugada, cantando com barbaridades de rainhas e doçuras de santas, acalentar o povo dos pescadores, silencioso e trigueiro.

Os que morrem sobre os montes, como os pastores contemplativos, são consumidos pelo sol; e andam dissipados pela luz hierática das estrelas, pelos vapores moles das nuvens, pelas auroras; são os átomos da luz, serenos, fecundos, consoladores e purificadores.

Assim os mortos são felizes.

Nós outros, andamos ruidosos e nocturnos, gordos ou empalidecidos, esfomeados de materialidades, calcando as Margaridas, perdidos nos deslumbramentos da carne; celebramos as religiões, esboçamos deuses, riscamos sociedades no ar; e, nervosos, desconsolados, derrubadores, no meio desta forte vitalidade – como um lavrador que suspende a enxada e se fica, todo amarelo, a pensar na velhice sem pão e sem lume – nós estamos sempre a sustar as nossas alegrias alumiadas e sonoras para pensarmos aterrados nos esfriamentos lúgubres do túmulo. 

E no entanto, os mortos, que são os pais, as irmãs, as bem-amadas, as mães, estão pela Natureza, pelos montes, pelas águas, pelos astros – serenos e imaculados. E porque tememos a morte? Que instinto tenebroso ou sagrado nos faz amar tanto esta forma humana, estes cabelos, estes olhos, estes braços enrodilhados de músculos? As árvores, as florescências, ar ervas, as folhas, são também formas de vida, santas e cheias de Deus. Por toda a parte, pelas famílias das constelações, pelos planetas, pelas árvores, pelos lívidos interiores da terra, pelas águas, pelos vapores, pelas plantações fecundas escorre a seiva, o átomo santo, a alma universal! Por toda a parte há atracções,  , amores, antagonismos, fibras, repulsões, polarizações, alegrias, estiolações, pólens, alma, movimento – vida. Porque há-de então ser esta forma que tem braços e cabelos, e não aquela que tem ramos e folhagens? 

A vitalidade é a mesma, cheia dos mesmos instintos negros, sagrados, luminosos, bestiais, divinos. 

Por isso os mortos são felizes porque andam longe da forma humana, onde há o mal, pela grande Natureza santa, onde só há o bem, na pureza, na serenidade, na fecundidade, na força. 

Bem-aventurados os que vão para debaixo do chão, porque vão para uma transfiguração sagrada. Mal caem sobre eles as últimas pazadas de terra e o canto dos padres, bárbaro e dolente, se perde com o fumo dos círios, o corpo fica só na plenidão da noite e do silêncio perante a grande vegetação esfomeada, ele vai dar-se ali como pasto às bocas sinistras das raízes: ele amolece entre as humidades da terra e desfaz-se em podridões: então as raízes começam a sugar e a comer: a podridão transforma-se em seiva; a seiva sobe pelos troncos, estende-se pelos ramos, palpita selvajamente dentro da árvore, engrossa, fecunda, arredonda-se nas exuberâncias dos gomos, e abre-se depois em folhagens, em florescências e em frutos: e o corpo transformado vê outra vez o sol, as grandes poeiras, e sente os orvalhos, e ouve as cantigas dos pastores, e vive sereno, repousado, na floresta imensa.

E no entanto junto daquele corpo, que sofreu a metem psicose do bem, tinha sido enterrado outro, num caixão de chumbo, entre pedra e cal, hirto e embalsamado. Entre a enorme palpitação difusa, enquanto em redor vai a lenta transformação e fecundação da semente onde já estão no germe as folhas, os troncos, os frutos, as flores, os ramos que mais tarde o vento atormentará; entre as raízes fortes e retorcidas dos arbustos, entre os calores da seiva, entre as uberdades e as voluptuosidades da terra desconhecidos, serenos e fecundos, o cadáver embalsamado ali está, inteiro, hirto, rijo, frio, lívido. Ele inveja os átomos livres e soltos, que sobem e vão e descem no encruzamento das vitalidades, que se deslocam e escorrem, como grãos de um saco, desde as constelações e os cometas, até às espumas castas das fontes. Ali, sequestrado à Natureza, não se pode dissolver na eterna matéria forte. Ele não tornará a ver o sol, as noites amolecidas de orvalho, os soluços lascivos do mar. Que estranha fatalidade pesava sobre ele que nem a morte o libertou? 

Oh! Possamos nós todos ter sempre em vida a religião do sol, da beleza e da harmonia; movermo-nos na atmosfera serena do bem e da liberdade; ter a alma limpa e transparente, sem sombras de deuses e de reis; sentir o enlaçamento divino dos braços de bem-amada, e depois, ó santa Natureza, toma os nossos corpos para fazer deles árvores cheias de sombra e ramos resplandecentes. 

E ao menos durante a vida convivamos com a Natureza; quando entramos numa floresta parece que a luz do sol, que escorre abundante e fecunda, nos enche todo o interior, despertando ali, como faz nas madrugadas de Maio, os coros de pássaros; e depois há um repouso sagrado como se todas as iras, e as amarguras, e os desalentos, e os terrores, se curvassem na mesma humildade, ao elevar-se na alma uma hóstia misteriosa. 

Durante o dia há nas florestas uma santa celebração. As árvores estão graves como sacerdotes. As flores incensam. A luz do sol é a alva flamejante e serena que a floresta veste. E ela murmura um canto dolente e acre, acompanhado pelos pássaros religiosos, e de entre as ramagens eleva-se uma paz viva, fecunda e consoladora, como uma vaga hóstia. E ao fim da missa, as árvores, balançando os ramos, parecem lançar ao povo curado das plantas, das ervas, das relvas, a sua benção soberba. 

Ora, quando nós passamos entre estas celebrações tristes, humildes, purificados, de entre a folhagem que se aninha inquieta no seio do vento, sai, para nós, toda a sorte de vozes, de saudações e de confidências.

São os nossos queridos mortos que nos falam, e então toda a matéria tende a elevar-se, a desfazer-se em vapores e orvalhos, a ir pousar, com suavidade e cansaços, nos seios da folhagem, que já foram seios amados. 

E depois a Natureza tem imensos perdões e reconciliações formidáveis. Todos os ódios trágicos, todos os corações ferozes que se fundem divinamente na promiscuidade dos orvalhos, das seivas e das espumas. Ela não escolhe. Tudo lhe é bom. As raízes das rosas pastam a podridão dos tiranos. E dos homens que na terra ensanguentaram, dilaceraram, profanaram, faz carvalhos austeros e cedros religiosos. 

Ela é mais doce do que as religiões. Ainda nas Escrituras Judas atraiçoa Jesus, e no entanto há muito tempo que os dois corpos – o do homem luminosos e o do homem escuro – andam enlaçados e dissolvidos nas mesmas auroras e nas mesmas corolas. 

Ela acolhe indiferente a todos os ritos, todas as religiões. As mesmas oliveiras que na Grécia encobriam, ondulosas, as coreias nuas e os ritos de Baco, cheios de sufocações lascivas, encobriam depois, agitadas por um vento feroz, sob a luz irada das constelações, o pobre Jesus, gemendo, arrastando-se na rocha e nas silvas, suando sangue, bradando aflito na noite das Agonias. 

Às horas em que acabo estas linhas vai o dia a declinar. Agora longe daqui, nos campos, lembra-me que anda o semeador erguido sobre os sulcos, roto e sereno, espalhando o grão com gesto augusto. E parece-me vê-lo aqui entre as transparências mórbidas do anoitecer distribuindo a vida. São os corpos dos seus avós, que ele assim espalha pelos sulcos fecundantes. São eles que se tornaram searas e que lhe hão-de encher o celeiro. E são eles que lhe dão a comer a sua carne e a beber o seu sangue.

Sagradas transfigurações!

Assim, é na Natureza que devemos ir procurar as consolações, estremecer com os amores mortos, chorar no seio das maternidades passadas. É na Natureza que se deve procurar a religião. Não é nas hóstias místicas que anda o corpo de Jesus – nas flores das laranjeiras. 



- Eça de Queirós na obra Prosas Bárbaras
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty15/9/2014, 15:21

BORBOLETAS

Quando depositamos muita confiança ou expectativas em uma pessoa, o risco de
se decepcionar é grande.

As pessoas não estão neste mundo para satisfazer as nossas expectativas, assim como não estamos aqui, para satisfazer as dela.

Temos que nos bastar... nos bastar sempre e quando procuramos estar com alguém, temos que nos conscientizar de que estamos juntos porque gostamos, porque queremos e nos sentimos bem, nunca por precisar de alguém.

As pessoas não se precisam, elas se completam... não por serem metades, mas por serem inteiras, dispostas a dividir objetivos comuns, alegrias e vida.

Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com a outra pessoa, você precisa em primeiro lugar, não precisar dela. Percebe também que aquela pessoa que você ama (ou acha que ama) e que não quer nada com você, definitivamente, não é o homem ou a mulher de sua vida.

Você aprende a gostar de você, a cuidar de você, e principalmente a gostar de quem gosta de você.

O segredo é não cuidar das borboletas e sim cuidar do jardim para que elas venham até você.

No final das contas, você vai achar
não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você!

(Mario Quintana)
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty2/11/2014, 10:31

Despedida

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.

(Cecília Meireles)
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty2/11/2014, 10:33

Canção de Outono

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles
que não se levantarão...

Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

(Cecília Meireles)
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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty4/11/2014, 19:34

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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty22/11/2014, 11:08


Perdida


Meu deus!, viu-se dizendo em voz alta. Ela não era religiosa, mas a frase alojara-se na sua boca desde que as tias solteiras a repetiam pela casa da sua infância, diante de cada pequena catástrofe doméstica. Da polenta queimada a um fio puxado na meia de náilon.

Desta vez, a catástrofe era dela. Lembrou-se de súbito que deixara o filho pequeno dormindo, trancado no apartamento, para fazer uma compra rápida no supermercado. E o esquecera por completo. Pensando bem, ela nem fora ao supermercado.

Onde estou agora?, olhou para os lados. Estava num café de shopping, daqueles de rede americana, tomando um cappuccino e comendo um croissant borrachento. Como eu vim parar aqui? Duas vistosas sacolas de loja estavam acomodadas na cadeira vaga da sua mesa. De quem é isso? Olhou para os lados, de novo. Só um casal e uma moça abduzida diante do computador. Nenhum deles parecia notar a sua confusão. Espiou dentro das sacolas, constrangida, como se elas não lhe pertencessem. Mas pertencem? Dentro, um vestido, um jeans e um sapato de salto. Quem comprou tem bom gosto, pensou. E eram do seu número, constatou.

Estou ficando louca, e um soluço estrangulado saiu dela. Meu deus, eu preciso correr. Meu deus, eu saí de manhã de casa. O Pedro acordou, deve ter chorado até se afogar. Morreu de asfixia. O Pedro acordou, está morrendo de fome e de sede no berço. Será que os vizinhos ouviram os gritos e chamaram os bombeiros? Meu deus, eu sou uma péssima mãe, uma mãe doida, do tipo que vira manchete de jornal. Vão me apedrejar como fizeram com os Nardoni. Como eu pude?

A enormidade do seu ato, do seu esquecimento, do seu desvario desabaram sobre ela. Seu bebê agora poderia estar morto. Ela já queria se matar também. Mas antes precisava ter certeza. Se ele ainda estivesse vivo, ela seria a melhor mãe do mundo, ela acreditaria no deus que invocava, ela seria outra.

Saiu da paralisia e correu a pegar um táxi na frente do shopping. Com as bolsas das lojas. Por que eu estou carregando essas bolsas? Obrigou o motorista a correr, a ultrapassar, a ignorar sinais vermelhos. Meu filho está morrendo, ela dizia, os olhos vermelhos, o rosto vermelho, o suor porejando desespero.

Atirou uma nota de 50 reais, a primeira que achou, e entrou correndo no prédio. Não se ouvia nada, só um funk. Quem é esse doido que escuta som nesse volume? Se eu não tiver matado o meu bebê, eu vou reclamar pro síndico. Socou o botão do elevador. Fora o funk, tudo parecia normal no prédio. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Nenhum som de bebê, também. Mas como ouviria, com este funk?

Entrou no elevador e descobriu que não tinha luz lá dentro. Se não tiver matado o seu filho, ela reclamaria do zelador relapso. Por sorte, ela lembrava de sempre carregar uma lanterna na bolsa. Derrubou tudo no chão para achar, tateando, mas não fazia mal. Ela precisava subir sete andares. Sete? Percebeu que tinha esquecido o número do seu apartamento. Onde é que eu deixei meu bebê, onde é que eu vivo? Agora o elevador subia para o sete, mas não era no sete. Ela tinha quase certeza de que não era. No quinto, o elevador parou, abrupto. Entrou um morador que ela não conhecia. Poderia também ser uma visita, como saber? Não era uma visita. A senhora está bem? Acho que não, eu esqueci onde eu moro, confessou, encolhida de vexame. A senhora mora no 402. Quer que eu ligue para alguém? A senhora não parece mesmo bem, talvez esteja tendo um AVC. Não, não, eu estou bem. Estou meio atrapalhada, por causa dessa escuridão. Queimou a lâmpada de novo, e o zelador não trocou. Escuro?, o homem perguntou, parecendo perplexo. É, o senhor está enxergando por causa da minha lanterna. Ele abriu a boca para falar, mas fechou. Tem certeza de que a senhora não precisa de ajuda? Estou bem, é só uma enxaqueca. Só preciso chegar em casa e tomar um comprimido. Ela não queria contar que tinha esquecido seu bebê. Antes de ser presa, ela se mataria, abraçada ao corpo do seu bebê. O vizinho desconhecido apertou o quarto andar, e ela desembarcou do elevador tentando aparentar normalidade. Já me sinto melhor, obrigada. Ela não queria que descobrissem logo que era uma assassina. De repente, já começava a pensar que poderia talvez fugir. E imediatamente sentiu a culpa escalar o esôfago com a bílis. Não, ela não viveria com a morte do seu filho. Mesmo querendo, mesmo querendo. Que horror, ela queria. Era uma mãe horrível, mesmo, além de uma assassina.

Vasculhou a bolsa, mas não encontrava as chaves. Deixei no elevador, no chão. Não vi no escuro. Estava parada na frente da porta e só então percebeu que o funk vinha de lá. Da sua casa. Mas como? Suas mãos tocaram o molho de chaves, afinal. Mas qual chave seria? Havia umas dez ali. Ela foi tentando uma por uma, e nenhuma parecia servir. Então, a porta se escancarou. E ela estava diante de um adolescente de cabelos compridos, calça larga, caída até abaixo do ossinho do quadril, tatuagens por todo o corpo e um piercing na sobrancelha direita. Quem é você? O que você fez com o meu bebê?, gritou.

Ele olhou para ela, por um segundo, antes de agarrá-la pelos ombros:

— Mãe, a senhora está bem?



(18/09/2012) - Eliane Brum
http://desacontecimentos.com/vida-breve/perdida/

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MensagemAssunto: Re: Poesias e textos que tu gostas   Poesias e textos que tu gostas - Página 4 Empty22/11/2014, 22:56

A IRMÃ FEIA


Sempre senti uma certa pena das Irmãs Feias da Gata Borralheira. E sempre achei que na história delas havia mais do que os livros de contos, os cartoons e as pantomimas nos querem fazer acreditar.

Ser a irmã feia não é fácil e, em especial, no Natal, em plena época de pantomima, com todo o seu brilho, esplendor, ouropéis, gritos e vaias, piadas velhas e espalhafatosas, e ooooh sim, e ooooh não, atrás de nós, sempre atrás de nós. Sem falar das crianças lambuzadas e aos guinchos, com as caras sujas de gelado, que nos cospem, ou de uma rapariga vestida de Príncipe que nos salpica de farinha, antes do corrupio até à Pista de Dança da Cinderela para irmos comer uma empada, ervilhas e tomar um copo depois do espectáculo.



Não, obrigada.


Claro que nos velhos tempos era pior. Um tal de Grimm tem muita culpa nisso, assim como o Perrault e o simplório do seu tradutor. Sapatos de vidro, por favor! As tais pantoufles de verre têm-me envenenado a vida desde então e não interessa que fossem originalmente de vair, como o arminho branco, que teria sido muito mais fácil para a planta dos pés (e até talvez tivessem servido, o que teria arrumado com o tal Príncipe e com a sua galdéria). Não, os velhos tempos eram cruéis, com corvos a debicarem-nos os olhos - depois da boda, claro, pois nada podia estragar o Grande Dia de Sua Alteza Presumida - e justificados tormentos para as malvadas.


Hoje em dia, claro que sofremos as provações dos julgamentos de Disney, o que é quase tão mau: o Mal torna-se ridículo perante tão enorme quantidade de bate-cus e bombas de farinha. Ser vilão perdeu toda a dignidade. É quase como qualquer outra multidão natalícia reunida em Bolton-on-Dearne ou em Barnsley Civic Hall, com representações de novelas radiofónicas por artistas decadentes de terceira classe e uns labregos que aparecem em tempos no Opportunity Knocks


Mas não me queixo. Sou uma profissional. Não sou como essas artistas amigas da onça, que, fora da estação, matam o tempo entre papéis de figurantes. O papel de Irmã Feia é arrogante e solitário, convém não esquecer.


Nós - eu e a minha irmã - nascemos algures na Europa. Os relatos divergem. Em qualquer dos casos, ninguém se mostra muito interessado na nossa história. Ou, melhor dizendo, ninguém quer saber o que nos acontece depois de cair o pano. Para uma Irmã Feia, não existe um para sempre, quanto mais um feliz para sempre.


O nosso pai adorava-nos e a nossa mãe tinha ambições, como todas as mães, de nos ver arrumadas (de preferência, a uma distância confortável). Foi então que se deu a tragédia. Uma queda do cavalo matou o nosso indulgente pai. A Mãe voltou a casar com um viúvo que tinha uma filha e é aqui que a história começa a sério. É evidente que a conhecem. Pelo menos, conhecem a versão dela: que o viúvo morreu; que depois nós oprimimos a filha, uma encantadora criança abandonada chamada Cinderela; que a obrigávamos a servir-nos, a coser a nossa roupa e a cozinhar as nossas lautas refeições; que lhe recusávamos desapiedadamente a oportunidade de ser a Rainha das Teenagers na Discoteca do Palácio; os ratos, o vestido, a Fada Madrinha; todo esse chorrilho de disparates. 


Digo bem, disparates. A história não se passou assim. 

É verdade que ela era bastante bonita, mas de uma beleza piegas e enfermiça. De um louro deslavado, escanzelada, pálida e frágil, ao passo que nós éramos fortes e bem constituídas. Ela fazia de propósito: só comia alimentos crus, andava sempre vestida de preto e era obcecada com a limpeza. Nunca se viram soalhos tão limpos (segundo parece, varrer queima 400 calorias por hora e encerar 500). Raramente falava connosco, mas ficava a ouvir fascinada os menestréis de passagem, com as suas histórias romanescas, e nunca faltava às peças baratas representadas todos os domingos de manhã na praça da vila. Os rapazes gostavam dela (claro), mas ela queria um príncipe. Os rapazes da aldeia não serviam para a Miss Importante e Superior. 



Evidentemente, odiávamo-la. Éramos ambas raparigas bastante vulgares (mais tarde, por despeito, passaram a dizer que éramos feias). Quando corríamos, bamboleávamos as banhas. Tínhamos uma tez descorada e cabelo encrespado, que não havia forma de domar. A Menina Presunçosa era rosada, esbelta, de estatura perfeita. Qualquer pessoa tê-la-ia odiado.


Claro que andava sempre maltrapilha. Era o género dela. Aliás, esse ar desmazelado estava muito in nessa altura - trapos de estilistas custam uma fortuna. Só uma pessoa magra e esguia é que os vestia bem. Com as minhas pernas, se eu os vestisse parecia uma vaca de qualquer pantomima. E os sapatos! Se vissem a quantidade de pares de sapatos que ela tinha no guarda-vestidos, não eram só de arminho branco, mas também de crocodilo, de marta, de plexiglas, de avestruz, de lagarto, de seda e todos com saltos de dozes centímetros e com tiras, mesmo no Inverno (pensem só como é que vão estar as plantas dos pés dela daqui a uns vinte anos), pois bem... não iam acreditar.


Já repararam como a história favorece as pessoas bem-parecidas? Henrique VIII, mal visto. Ricardo Coração de Leão, bem visto. Catarina de Aragão, mal vista. Ana de Clèves, bem vista. Os pintores da corte têm uma grande quota-parte de responsabilidade nisso, assim como os contadores de histórias. Já todos conhecem o fim: ela fica com o Príncipe (que, por acaso, era baixo, gordo e calvo), com o castelo, o ouro, o vestido branco de casamento, as pétalas de rosas, essa droga toda. E nós ficamos com os corvos. Happy Hour para sempre. 


Mas as coisas pioraram. Como já disse, para uma Irmã Feia nunca há um para sempre. Nunca ninguém pensou em escrevem um, como é de calcular. Estavam todos demasiado ocupados a desfalecer perante Sua Alteza Presumida e os seus pezinhos perfeitos. E a nós, o que é que nos aconteceu? Desaparecemos? Não, o que aconteceu foi o seguinte: nós, as Irmãs esquecidas - e que nos convertemos depois nas Irmãs Feias, nas Bruxas e nas Parcas da Divina Comédia - entrámos na lenda, difamadas ao longo do percurso. Discutimos, sem êxito, com Grimm e Perrault, tentámos uma ponta de sedução com Tennyson, mas também em vão. Esperávamos ser mais bem sucedidas no século XX, mas, como disse, foi nessa altura que apareceu o tal Disney. Já estávamos dispostas a vender a alma em troca de um bocadinho de opinião favorável.


Porém, fazemos parte de uma companhia de comediantes. Eu, pelo menos, faço - hoje, a minha irmã representa demasiado para a galeria, para meu gosto -, encontram-me sempre por cá, no Natal, num ou noutro teatro, com a cara reluzente de pintura, a cabeleira empoada e um enorme saiote armado. Agrada-me pensar que há um certa nobreza - uma quase heroicidade - no meu papel; algo de patético, oculto, que só alguns eleitos conseguem vislumbrar. De qualquer modo, a maior parte deles não me estão a observar; estão a olhar para ela, claro, a Vaidoseca, com o seu vestidinho de folhos e sapatos de lantejoulas. Quando falo, as minhas deixas são normalmente abafadas por assobios ou gargalhadas. Mas não me importo. Sou uma profissional. Sob o meu traje grotesco, sob a minha máscara de maquilhagem, há um mistério à espera. Penso que, um dia, alguém vai reparar em mim. Um dia, o meu Príncipe há-de chegar.


Ontem à noite foi véspera de Natal. A melhor noite do ano. Claro que há espectáculos depois, quase até ao fim de Janeiro, mas a véspera de Natal é especial. Depois, a magia desfaz-se e a depressão instala-se. Toda a gente se sente empanturrada e indolente, e desleixa-se nas deixas. O espectáculo transfere-se talvez para Blackpool ou para outras estância fora de época, para se desfazer em pó, tranquilamente, até ao ano seguinte. O guarda-roupa é arrumado em baús. As luzes empacotadas em caixotes. Mas agora era véspera de Natal e toda a gente estava mais barulhenta, mais animada, mais estridente do que habitual. O público assobiava e apupava ainda com mais energia, as crianças estavam mais pegajosas, o Príncipe mais elegante; a vaca da pantomima mais atlética; o Pajem mais patético; e, como é evidente, a querida e boa Cinderela, a estrela do espectáculo, mais doce, mais bonita, mais graciosa, mais resplandecente e feérica do que nunca. 


Apenas eu me sentia diferente à medida que se aproximava o último acto. Doía-me a cabeça. Ocorreu-me vagamente a ideia de abandonar a pantomima de uma vez por todas, ir-me embora, retirar-me para qualquer sítio fora da Europa onde não me reconhecessem.


Havia de ter muita sorte, pensei. Não há saída para uma Irmã Feia. Mas, apesar disso, a ideia persistia. Que se passava comigo nessa noite? Abanei a cabeça para afastar o torpor e, pela primeira vez na minha já longa carreira, houve algo que me apanhou de surpresa e quase me fez esquecer uma deixa.


Havia um homem a observar-me na plateia. Sentado junto ao palco, meio encoberto na sombra. Um homem corpulento, de cabelo comprido, com os ombros levemente arqueados sob um sobretudo cinzento felpudo, e com os olhos fixos em mim.


Era inusitado, mais do que isso... surpreendente. Era a cena da Cinderela, a cena em que eu e a minha irmã nos ataviamos ao espelho enquanto ela canta a sua canção melancólica e os animais se põem a balir, solidários. Contudo, não havia qualquer dúvida (arrisquei uma segunda espreitadela através do espelho): ele estava a olhar para mim.


Para mim. Senti um baque ridículo no peito. O homem não era nenhum Príncipe Encantado, isso era óbvio, e percebi pelo cabelo crespo e grisalho que já não era novo. Mas parecia forte e enérgico e olhos grandes, sob a madeixa de cabelo, eram brilhantes e decididos. Tomei de súbito consciência do meu traje ridículo, da enorme armação por baixo do saiote, dos sapatos exagerados, do peito absurdamente enchumaçado. Deve achar-me divertida, pensei para comigo, sombriamente. Apenas isso. Mas a verdade é que ele não sorria.


Estive consciente dos olhos dele fixos em mim durante toda a cena. Quando voltei ao palco depois do dueto lamechas de Cinderela com o seu Príncipe, ele estava à minha espera e o mesmo sucedeu da vez seguinte. Quando a farinha me atingiu no rosto e o público gritava de euforia, ele foi o único que não riu. Em vez disso, vi-o a baixar a cabeça, como que amargurado (assim pensei) ante a humilhação de uma mulher delicada e orgulhosa. Sentia o coração a bater descompassadamente. Percorri toda a cena final como que aturdida, recitando o meu papel automaticamente, desviando incessantemente o olhar para o rosto do homem que continuava a observar-me da sombra. Não era de facto um rosto agradável, mas tinha personalidade e um certo ar romanesco e selvagem. As mãos dele - tão grandes que quase pareciam patas - talvez fossem capazes de ternura. Os olhos dele chispavam no escuro com o brilho dourado de uma aliança de casamento. Eu tremia dos pés à cabeça.


Chegou a vez da cena final. Depois a chamada ao palco. De mãos dadas. aproximámo-nos todos no proscénio para nos curvar-mos numa vénia e quando me inclinei, ele levantou-se e falou-me ao ouvido, num tom insistente.


Vai ter comigo lá fora, por favor.


Olhei à volta, precipitadamente, ainda meio à espera de ver outra mulher - uma mulher mais bonita, mais merecedora - dar um passo em frente para escutar a mensagem dele. Mas ele estava a olhar para mim com uma expressão séria nos olhos brilhantes. E quando o fixei, quase me ia esquecendo da mão quente e nervosa do actor ao meu lado, vi-o assentir com a cabeça como que em resposta a uma muda interrogação.


Eu?


Sim, tu.


Em seguida, desapareceu na multidão, tão rápida e silenciosamente como um caçador. Houve catorze chamadas ao palco. Atiravam-nos serpentinas, choviam confetti e ofereciam flores a Sua Senhoria e ao pretenso Príncipe Encantado. Via o público a gritar e a aplaudir (com alguns apupos e assobios desgarrados dirigidos já sabem a quem), mas na minha cabeça pairava um grande silêncio, um enorme aturdimento. Como se um olho cuja existência ignorava se tivesse aberto dentro da minha cabeça. Mal o pano desceu, atirei para o lado a cabeleira postiça e a armação da saia e precipitei-me para a porta, convencida de que ele se tinha ido embora, que tinha sido uma brincadeira, que ele - quem quer que fosse - já tinha desaparecido, levando consigo um pedacinho do meu coração.


Estava à espera na ruela atrás do teatro. As luzes de néon da Pista de Dança da Cinderela do outro lado da rua incendiavam-lhe os cabelos de tons berrantes. A neve estalava-me debaixo debaixo dos pés enquanto corria para ele. Eu dava-lhe pelos ombros, embora seja mais alta do que a maior parte das mulheres. Pela primeira vez na minha vida, sentia-me pequena e delicada.

- Eu soube logo - rosnou, enquanto me estreitava no círculo dos seus braços. - Soube mal te vi ali. Como nas histórias. Uma espécie de magia. - Beijava-me ardentemente enquanto falava, esfregando a cara nos meus cabelos. - Vem comigo. Vem comigo agora. Deixa tudo. Aceita o risco. 

- Eu? - balbuciei, quase incapaz de respirar. - Mas eu sou a Irmã Feia!



- Eu conheço bem as estrelas da companhia. São todas iguais. Houve uma vez uma rapariga... - Fez uma pausa, baixando a cabeça como se as recordações o fizessem sofrer. - Agora já sei. Aprendi a ver além das máscaras. - Fez nova pausa e olhou para mim. - E da tua também. 


Eu estreitava-me contra ele enquanto o ouvia falar, com a cabeça enterrada no pêlo cinzento e áspero do seu casaco. Sentia o coração palpitar mais descompassado do que nunca. 

- Mas eu sou... - recomecei a dizer.


- Não. - Docemente, deslizou a mão pelo meu rosto, removendo com os dedos os restos da pintura. - Não, não és.


Por momentos tentei imaginar-me não sendo a Irmã Feia. Feia é uma palavra que tenho arrastado comigo toda a vida; é ela que define quem eu sou. Sem ela, quem sou eu? A ideia fez-me estremecer.


O desconhecido viu a minha expressão.


- Essas coisas fazem parte dos papéis que desempenhamos - disse ele. - O Bom, o Mau, o Feio. À nossa maneira, também somos heróis. Nós, os que saímos a rastejar e a blasfemar quando a cortina desce. Os que são postos de lado. Os que não são felizes para sempre. Nós pertencemos ao mesmo grupo, tu e eu. Depois de tudo o que sofremos, temos direito a algo que seja nosso. 


- Mas... a história - disse eu, num fio de voz.


- Vamos escrever outra história. - Parecia muito seguro de si e forte. Sentia as minhas últimas defesas começarem a esboroar-se. Atrás de nós, a Pista de Dança da Cinderela começou a martelar uma música de discoteca. O bar ia abrir.

- Mas eu nem sequer te conheço! - protestei. Mas o que eu queria dizer, na realidade, era que não me conhecia a mim, que uma vida inteira a fazer de Irmã Feia me despojara de qualquer outra identidade. Pela primeira vez na minha vida sentia-me à beira das lágrimas.



O desconhecido sorriu. Reparei que tinha uns dentes muito grandes, mas os olhos eram meigos.

- Chama-me Lobinho Mau - disse ele.



[Conto retirado do livro Danças e Contradanças de Joanne Harris]
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