Olá, pessoal!
Há alguns meses, eu tive uma pequena inspiração enquanto aguardava na fila da segunda dose da famigerada vacinação do covid e acabei escrevendo esse conto baseado naquele dia. Alguns detalhes na história foram alterados, outros são realmente baseados na minha história de vida. Como ficou um meio comprido e talvez seja cansativo ler tudo de uma vez, decidi divir em pequenos capítulos para publicar. Espero que curtam! Podem dar o feedback caso se interessem ou corrigir caso encontrem algum erro na ortografia! Abraços e boa leitura a todos!
Há alguns meses, eu tive uma pequena inspiração enquanto aguardava na fila da segunda dose da famigerada vacinação do covid e acabei escrevendo esse conto baseado naquele dia. Alguns detalhes na história foram alterados, outros são realmente baseados na minha história de vida. Como ficou um meio comprido e talvez seja cansativo ler tudo de uma vez, decidi divir em pequenos capítulos para publicar. Espero que curtam! Podem dar o feedback caso se interessem ou corrigir caso encontrem algum erro na ortografia! Abraços e boa leitura a todos!
Era um daqueles dias comuns, em que nada de interessante está para acontecer. Bem, nada de bom se você for alguém calmo e tranquilo. Mas esse não é o meu caso.
Sou o típico cara que pode até ser muito sociável quando está perto daqueles de quem gosta (o que é raro, confesso), mas morro de medo de qualquer outra situação que envolva seres humanos e interação. Por conta disso tudo, evito ao máximo sair de casa, porque imagina que horror ter que conversar com pessoas desconhecidas!
Nesse período de isolamento, meu sonho de recusar convites tornou-se realidade. O melhor? Não preciso mais inventar desculpas esdrúxulas para tal. Não é incrível?
Na maior parte do tempo.
Mas hoje é diferente.
Acima de qualquer desânimo para ver qualquer pessoa, chegou a hora de tentar receber alguma esperança para minha vida. Chegou a hora de tentar me proteger contra os males que assolam a humanidade. É o momento de mostrar ao mundo minha fé na ciência. O período mais aguardado da minha vida nos últimos 22 meses (pois é, contei mesmo, é uma coisa importante, poxa!) está batendo na minha porta. É o dia de receber a picadinha que pode significar mais alguns anos de vida (e também é a hora em que finjo que minha saúde mental está ótima e que eu nunca, jamais pensei em pular do penhasco e acabar com tudo).
O problema é que nem tudo é um mar de rosas, muito menos a minha vida.
Pego Felix, meu gato, de cima da minha cama e sigo para a cozinha, dando de cara com o meu pai de braços cruzados. Pronto para me dar uma notícia bombástica. Ou nem tanto.
– Tony, falei com sua mãe. Liga para ela a hora que quiser ir para a fila da vacinação, beleza?
Sinto como se tivessem me atacado um balde d’água. Oi? Eu não posso ir sozinho? Mas e o lance de “você é maior de idade, precisa ser responsável”? Sumiu de repente?
Dou um sorriso rápido para ele e concordo com a cabeça, já sabendo que não adiantaria tentar discutir – a resposta sempre seria “você vai sim, pare de reclamar”.
Coloco Felix em seu cantinho de comida e fico sentado ao seu lado por alguns minutos, observando meu animalzinho enquanto se alimenta de algo que parece horrível. Não tem uma cara bonita, mas imagino como deve ser estar na pele de um bichinho como ele: sempre de barriga cheia, correndo por onde quiser, tomando banho uma vez por semana (ou menos, até) e sem nenhuma responsabilidade de vida.
Pensar nisso me deixa triste, pois me lembro dos gatos e cachorros que não têm a mesma sorte de Felix. Como posso estar invejando um gato? Só posso estar ficando louco mesmo.
Balanço a cabeça e me levanto a fim de ir até meu quarto. Meu pai me encontra na metade do caminho e me chama para comermos um pouco de sorvete antes que ele precisasse voltar ao trabalho. Não recuso – quem recusa sobremesa em dia de semana?
Assistimos a algum filme que estava passando na televisão e logo sua hora chega. Não somos muito de conversar durante a semana (nem em outros dias, mas isso não vem ao caso), e por mim está tudo bem. Me despeço ao vê-lo descendo a rua e volto para casa, já tentando me preparar para o desafio do dia.
Tomo um banho rápido e me sento à mesa da cozinha, aproveitando para estudar um pouco antes que minha mãe chegasse. Pouco antes do horário combinado, meu celular toca. É ela!
– Antônio? Oi, filho!
– Oi, mãe.
– Estou indo aí, tá? Esteja pronto que passo em dez minutos. Tchau.
– Beleza, até mais.
Não, nossas conversas não têm qualquer tipo de emoção. Na verdade, sim. Desconforto.
Veja bem: não é que eu não goste da minha mãe. Não é que ela tenha me abandonado como muitos fazem após o divórcio. Não é que ela nunca mais tenha tentado se aproximar de mim. Temos uma relação estável – e isso significa que enviamos mensagens de feliz aniversário a cada ano e ela me leva na casa dos parentes dela de tempos em tempos.
Mas ela já não é mais parte essencial da minha vida. Talvez tenha sido até meus oito anos – época em que ela e meu pai ainda estavam juntos –, mas depois disso só consigo me lembrar de anos de brigas entre os dois.
Ela me trazia depois do horário que meu pai lhe pedia. Ele discutia com ela. Ela já nos ameaçou e quase nos atropelou na frente de casa. Ele a processou. Ela atrasou milhares de vezes a pensão. Ele fez o melhor que pôde para não provocar nenhum tipo de alienação parental em relação a toda a situação, mas ela não colaborava e abusava das drogas na minha frente sem qualquer remorso. Ele deixou de se interessar e me proibiu de vê-la por um tempo.
E, de repente, tudo muda. O filho dos dois precisa ir para a faculdade. Não era meu curso desejado, mas eu ficaria longe dos meus pais – por mim, tudo bem. Eles decidiram deixar o ódio de lado e se uniram para me auxiliar fora da cidade (tudo fechou e tive que voltar para o fim do mundo, mas essa é outra história). E também tem todo o lance de minha mãe ter participado de várias reuniões do NA nos últimos anos para tentar ficar sóbria (funcionou razoavelmente bem, ela ainda toma a cervejinha do fim de semana, mas sem o abuso antigo).
Por isso tudo, aqui estou hoje: esperando que minha mãe venha me buscar para me levar ao centro de vacinação. Ainda que eu tenha condições de fazer isso sozinho (é, mais ou menos. Fiz o carro apagar no meio da avenida cinco vezes na última vez em que dirigi e bati em um lixeiro que estava perdido no estacionamento, mas, ei, ainda sou motorista!).
Visto a camiseta preta, termino de colocar todas as joias que gosto de usar para sair (na verdade, são só meus anéis porque eles incomodam para escrever e gosto de parecer estiloso fora de casa, já que minhas pulseiras e meus colares não saem de mim – a não ser quando sou obrigado a ir à praia e a ambientes muito... expostos e aquáticos) e calço meus tênis.
Me sento no sofá e fico esperando pela chegada de minha mãe enquanto observo Felix andar de um lado ao outro na sala, ronronando e reclamando por mais comida. Empurro seu corpo de leve no chão e faço carinho em sua barriga enquanto isso. Sei que ele não é um cachorrinho, mas, pela cara, parece gostar de ser tratado como se fosse um.
– Felix, você está comendo demais ultimamente. Se eu te der mais um pouco de whiskas, seu veterinário vai me matar, bobão!
Falo baixinho com o gato e percebo que sua expressão mudou. Ele parece... triste?
– Ei, você é capaz de saber o que sinto, gato? Está imitando minha tristeza?
Dou um sorriso de lado para ele e ouço a música. Minha mãe chegou. Beijo a testa de Felix ao me levantar e brinco com sua cabecinha, rindo fraco ao passar por ele e ir para fora. Após fechar a porta de casa – já sentindo o olhar fixo dela em mim –, respiro fundo e sigo até seu carro, lhe dando um aceno breve de cabeça.
– Oi, mãe
– Oi, filho! Você está bem? Vamos lá! – vejo aquela animação de “esse é sangue do meu sangue, preciso tratá-lo bem já que só nos vemos uma vez a cada milênio” e concordo, a observando em seguida.
– Sim, e contigo? Tudo certo com a vovó?
Minha mãe havia voltado a viver com a própria mãe depois de crises financeiras seguidas. Minha avó pode até estar velha, mas continua sendo a mesma chata de sempre. Percebo que o assunto não a deixa confortável, pois ouço o engolir em seco de minha mãe e aquela risada constrangida antes de ela dar a partida no carro.
– Aham. Vamos no negócio de vacinas do centro ou do bairro?
Respondo a ela que poderia decidir, afinal, eu não estava dirigindo. Ficamos em silêncio por alguns momentos e paro para observar minha mãe nesse período.
Ela pode estar no auge de seus cinquenta anos, mas segue com aquela jovialidade que, provavelmente, existia quando era mais nova. Consigo imaginá-la como a mulher que era aos 30 anos, quando nasci. Não é difícil entender o motivo de meu pai ter se apaixonado naquela época.
Minha mãe ainda tinha cabelos castanhos, sem fios brancos, um sorriso lindo com covinhas bem marcadas (apesar de tudo, gostaria de ter puxado isso dela) e olhos verde bem claros, como uma floresta recém nascida. Meu pai, no entanto, tinha a cabeça parecida com uma nevasca, um sorriso acolhedor (porém com alguns dentes faltantes e amarelados) e olhos escuros como o breu.
As personalidades deles também eram contrastantes. Meu pai era quieto e me deixava passar grande parte do dia em meu quarto (ou fazendo literalmente qualquer coisa que não envolvesse conversar com ele, e por mim estava simplesmente perfeito). Já minha mãe adorava puxar papo comigo, fosse sobre o tempo, sobre a morte da dona Chiquinha ou mesmo sobre a formiga que passava em frente aos nossos pés. Ou talvez esse entusiasmo dela fosse por passarmos tão pouco tempo juntos.
– Antônio? Será que podemos parar aqui e ir andando até o fim da rua? – sua voz veluda me tira do transe em que me meti pelos últimos segundos e dou uma olhada rápida para minha mãe, totalmente perdido. Confesso que inventei parte dessa última fala, pois só a ouvi chamando por meu nome e falando do fim da rua.
Concordo brevemente com a cabeça antes de dizer qualquer coisa e me levanto, já com meus documentos em mãos e também meu kit de sobrevivência a situações sociais: fone de ouvido, livro e, como estamos em um ótimo momento para o maior esconderijo possível, máscara.
Pensar em ter que conversar com seres humanos me deixa aterrorizado. Pior ainda é imaginar que posso conhecer alguém e, se estiver a fim de um drama maior, no péssimo estilo de filme de terror, basta acrescentar uma conversa constrangedora com um cumprimento a um conhecido antigo. Mas eu ainda posso deixar mais horrível: cumprimentar a pessoa errada (no meu estado atual, isso jamais aconteceria, mas já tive que fugir de situações assim. Acontece).
Sigo Rebeca – também conhecida como minha mãe – até a fila em que estão distribuindo as senhas para aguardar pela vacina. O moço é bonito, mas totalmente antipático – provavelmente esgotado após tantas horas entregando folhetinhos de senha. Suspiro de frustração ao ver o número 108 impresso em minha folha. Tinha poucos segundos que a moça havia chamado o número 33!
Sou o típico cara que pode até ser muito sociável quando está perto daqueles de quem gosta (o que é raro, confesso), mas morro de medo de qualquer outra situação que envolva seres humanos e interação. Por conta disso tudo, evito ao máximo sair de casa, porque imagina que horror ter que conversar com pessoas desconhecidas!
Nesse período de isolamento, meu sonho de recusar convites tornou-se realidade. O melhor? Não preciso mais inventar desculpas esdrúxulas para tal. Não é incrível?
Na maior parte do tempo.
Mas hoje é diferente.
Acima de qualquer desânimo para ver qualquer pessoa, chegou a hora de tentar receber alguma esperança para minha vida. Chegou a hora de tentar me proteger contra os males que assolam a humanidade. É o momento de mostrar ao mundo minha fé na ciência. O período mais aguardado da minha vida nos últimos 22 meses (pois é, contei mesmo, é uma coisa importante, poxa!) está batendo na minha porta. É o dia de receber a picadinha que pode significar mais alguns anos de vida (e também é a hora em que finjo que minha saúde mental está ótima e que eu nunca, jamais pensei em pular do penhasco e acabar com tudo).
O problema é que nem tudo é um mar de rosas, muito menos a minha vida.
Pego Felix, meu gato, de cima da minha cama e sigo para a cozinha, dando de cara com o meu pai de braços cruzados. Pronto para me dar uma notícia bombástica. Ou nem tanto.
– Tony, falei com sua mãe. Liga para ela a hora que quiser ir para a fila da vacinação, beleza?
Sinto como se tivessem me atacado um balde d’água. Oi? Eu não posso ir sozinho? Mas e o lance de “você é maior de idade, precisa ser responsável”? Sumiu de repente?
Dou um sorriso rápido para ele e concordo com a cabeça, já sabendo que não adiantaria tentar discutir – a resposta sempre seria “você vai sim, pare de reclamar”.
Coloco Felix em seu cantinho de comida e fico sentado ao seu lado por alguns minutos, observando meu animalzinho enquanto se alimenta de algo que parece horrível. Não tem uma cara bonita, mas imagino como deve ser estar na pele de um bichinho como ele: sempre de barriga cheia, correndo por onde quiser, tomando banho uma vez por semana (ou menos, até) e sem nenhuma responsabilidade de vida.
Pensar nisso me deixa triste, pois me lembro dos gatos e cachorros que não têm a mesma sorte de Felix. Como posso estar invejando um gato? Só posso estar ficando louco mesmo.
Balanço a cabeça e me levanto a fim de ir até meu quarto. Meu pai me encontra na metade do caminho e me chama para comermos um pouco de sorvete antes que ele precisasse voltar ao trabalho. Não recuso – quem recusa sobremesa em dia de semana?
Assistimos a algum filme que estava passando na televisão e logo sua hora chega. Não somos muito de conversar durante a semana (nem em outros dias, mas isso não vem ao caso), e por mim está tudo bem. Me despeço ao vê-lo descendo a rua e volto para casa, já tentando me preparar para o desafio do dia.
Tomo um banho rápido e me sento à mesa da cozinha, aproveitando para estudar um pouco antes que minha mãe chegasse. Pouco antes do horário combinado, meu celular toca. É ela!
– Antônio? Oi, filho!
– Oi, mãe.
– Estou indo aí, tá? Esteja pronto que passo em dez minutos. Tchau.
– Beleza, até mais.
Não, nossas conversas não têm qualquer tipo de emoção. Na verdade, sim. Desconforto.
Veja bem: não é que eu não goste da minha mãe. Não é que ela tenha me abandonado como muitos fazem após o divórcio. Não é que ela nunca mais tenha tentado se aproximar de mim. Temos uma relação estável – e isso significa que enviamos mensagens de feliz aniversário a cada ano e ela me leva na casa dos parentes dela de tempos em tempos.
Mas ela já não é mais parte essencial da minha vida. Talvez tenha sido até meus oito anos – época em que ela e meu pai ainda estavam juntos –, mas depois disso só consigo me lembrar de anos de brigas entre os dois.
Ela me trazia depois do horário que meu pai lhe pedia. Ele discutia com ela. Ela já nos ameaçou e quase nos atropelou na frente de casa. Ele a processou. Ela atrasou milhares de vezes a pensão. Ele fez o melhor que pôde para não provocar nenhum tipo de alienação parental em relação a toda a situação, mas ela não colaborava e abusava das drogas na minha frente sem qualquer remorso. Ele deixou de se interessar e me proibiu de vê-la por um tempo.
E, de repente, tudo muda. O filho dos dois precisa ir para a faculdade. Não era meu curso desejado, mas eu ficaria longe dos meus pais – por mim, tudo bem. Eles decidiram deixar o ódio de lado e se uniram para me auxiliar fora da cidade (tudo fechou e tive que voltar para o fim do mundo, mas essa é outra história). E também tem todo o lance de minha mãe ter participado de várias reuniões do NA nos últimos anos para tentar ficar sóbria (funcionou razoavelmente bem, ela ainda toma a cervejinha do fim de semana, mas sem o abuso antigo).
Por isso tudo, aqui estou hoje: esperando que minha mãe venha me buscar para me levar ao centro de vacinação. Ainda que eu tenha condições de fazer isso sozinho (é, mais ou menos. Fiz o carro apagar no meio da avenida cinco vezes na última vez em que dirigi e bati em um lixeiro que estava perdido no estacionamento, mas, ei, ainda sou motorista!).
Visto a camiseta preta, termino de colocar todas as joias que gosto de usar para sair (na verdade, são só meus anéis porque eles incomodam para escrever e gosto de parecer estiloso fora de casa, já que minhas pulseiras e meus colares não saem de mim – a não ser quando sou obrigado a ir à praia e a ambientes muito... expostos e aquáticos) e calço meus tênis.
Me sento no sofá e fico esperando pela chegada de minha mãe enquanto observo Felix andar de um lado ao outro na sala, ronronando e reclamando por mais comida. Empurro seu corpo de leve no chão e faço carinho em sua barriga enquanto isso. Sei que ele não é um cachorrinho, mas, pela cara, parece gostar de ser tratado como se fosse um.
– Felix, você está comendo demais ultimamente. Se eu te der mais um pouco de whiskas, seu veterinário vai me matar, bobão!
Falo baixinho com o gato e percebo que sua expressão mudou. Ele parece... triste?
– Ei, você é capaz de saber o que sinto, gato? Está imitando minha tristeza?
Dou um sorriso de lado para ele e ouço a música. Minha mãe chegou. Beijo a testa de Felix ao me levantar e brinco com sua cabecinha, rindo fraco ao passar por ele e ir para fora. Após fechar a porta de casa – já sentindo o olhar fixo dela em mim –, respiro fundo e sigo até seu carro, lhe dando um aceno breve de cabeça.
– Oi, mãe
– Oi, filho! Você está bem? Vamos lá! – vejo aquela animação de “esse é sangue do meu sangue, preciso tratá-lo bem já que só nos vemos uma vez a cada milênio” e concordo, a observando em seguida.
– Sim, e contigo? Tudo certo com a vovó?
Minha mãe havia voltado a viver com a própria mãe depois de crises financeiras seguidas. Minha avó pode até estar velha, mas continua sendo a mesma chata de sempre. Percebo que o assunto não a deixa confortável, pois ouço o engolir em seco de minha mãe e aquela risada constrangida antes de ela dar a partida no carro.
– Aham. Vamos no negócio de vacinas do centro ou do bairro?
Respondo a ela que poderia decidir, afinal, eu não estava dirigindo. Ficamos em silêncio por alguns momentos e paro para observar minha mãe nesse período.
Ela pode estar no auge de seus cinquenta anos, mas segue com aquela jovialidade que, provavelmente, existia quando era mais nova. Consigo imaginá-la como a mulher que era aos 30 anos, quando nasci. Não é difícil entender o motivo de meu pai ter se apaixonado naquela época.
Minha mãe ainda tinha cabelos castanhos, sem fios brancos, um sorriso lindo com covinhas bem marcadas (apesar de tudo, gostaria de ter puxado isso dela) e olhos verde bem claros, como uma floresta recém nascida. Meu pai, no entanto, tinha a cabeça parecida com uma nevasca, um sorriso acolhedor (porém com alguns dentes faltantes e amarelados) e olhos escuros como o breu.
As personalidades deles também eram contrastantes. Meu pai era quieto e me deixava passar grande parte do dia em meu quarto (ou fazendo literalmente qualquer coisa que não envolvesse conversar com ele, e por mim estava simplesmente perfeito). Já minha mãe adorava puxar papo comigo, fosse sobre o tempo, sobre a morte da dona Chiquinha ou mesmo sobre a formiga que passava em frente aos nossos pés. Ou talvez esse entusiasmo dela fosse por passarmos tão pouco tempo juntos.
– Antônio? Será que podemos parar aqui e ir andando até o fim da rua? – sua voz veluda me tira do transe em que me meti pelos últimos segundos e dou uma olhada rápida para minha mãe, totalmente perdido. Confesso que inventei parte dessa última fala, pois só a ouvi chamando por meu nome e falando do fim da rua.
Concordo brevemente com a cabeça antes de dizer qualquer coisa e me levanto, já com meus documentos em mãos e também meu kit de sobrevivência a situações sociais: fone de ouvido, livro e, como estamos em um ótimo momento para o maior esconderijo possível, máscara.
Pensar em ter que conversar com seres humanos me deixa aterrorizado. Pior ainda é imaginar que posso conhecer alguém e, se estiver a fim de um drama maior, no péssimo estilo de filme de terror, basta acrescentar uma conversa constrangedora com um cumprimento a um conhecido antigo. Mas eu ainda posso deixar mais horrível: cumprimentar a pessoa errada (no meu estado atual, isso jamais aconteceria, mas já tive que fugir de situações assim. Acontece).
Sigo Rebeca – também conhecida como minha mãe – até a fila em que estão distribuindo as senhas para aguardar pela vacina. O moço é bonito, mas totalmente antipático – provavelmente esgotado após tantas horas entregando folhetinhos de senha. Suspiro de frustração ao ver o número 108 impresso em minha folha. Tinha poucos segundos que a moça havia chamado o número 33!
SEGUNDA PARTE>>>>>
TERCEIRA PARTE>>>>>
Última edição por Mel_127 em 14/1/2022, 19:39, editado 5 vez(es)