Olá, pessoas dessa internet! Tudo bem com vocês?
Eu espero, de coração, que todos estejam bem e se cuidando! Essa é a segunda parte do conto que escrevi. Agradeço todos os comentários e todo o carinho que recebi no primeiro pedaço. Já peço perdão por qualquer erro ortográfico que possa existir. Podem deixar comentários, críticas ou correções, caso percebam algo. Abraços e boa leitura a todos!  coração ace  fatia de bolo  


Estou sem paciência para procurar uma cadeira vaga ali no fim do salão, então sigo em direção ao local em que mais há lugares vazios: bem na frente da bancada dos atendentes. Nada mais poderia dar de errado, pois sei que estou no centro das atenções de grande parte das pessoas que se encontram nesse local.
Ok, é óbvio que sei que não sou literalmente o centro, mas é como se eu fosse e minha mente ansiosa me faz ter uma certeza quase plena de que sou um vulcão que está esperando a grandiosa erupção. Não tem a ver com minhas roupas, meu estilo, meu corpo nem nada. Tem a ver com minha cabeça – minha psicóloga já me explicou que o mundo não gira ao meu redor e que não, ninguém fica me observando o tempo todo como geralmente sinto.
Em meio aos meus devaneios, nem percebo que minha mãe acaba de sentar-se ao meu lado, totalmente animada por estarmos unidos outra vez. Ergo uma sobrancelha curioso e olho para meu celular em minhas mãos por alguns segundos antes de decidir prestar atenção aos pensamentos nada interessantes que ela tem para compartilhar comigo.
– Me falaram para entrar com você aqui, filho! A chuva lá fora está forte demais para eu ficar, acredita? Não é ótimo estarmos juntos até aqui? Eu adoro sua companhia!
“Meu Deus, se o Senhor estiver me ouvindo, me leva! Teu filho está pronto!”
Faço minha breve prece aos céus, rezando para que o famoso buraco no chão se abra enquanto minha mãe abre a boca para falar mais alguma coisa super incrível. Como assim “chuva”? O tempo estava quase perfeito quando olhei para o céu a última vez (beleza, confesso que isso aconteceu no domingo, quando eu me preparava para ver meus amigos do teatro, e hoje já é quarta, mas ainda assim...) e o aplicativo de previsão do tempo dizia que havia pouca probabilidade de chuva. Quais são as chances de isso estar acontecendo?
– Nossa, mãe, que doido, né? É bom que você esteja aqui
Dou aquele sorriso breve e totalmente amarelo que damos quando estamos desconfortáveis com algo, e o fato de estar de máscara me faz sorrir de verdade logo em seguida, até porque ninguém pode ver as caretas que faço após cada palavra que sai dos lábios de minha mãe. Ela pode não ser uma pessoa ruim e realmente só quer tentar se aproximar de mim – fingir que somos mãe e filho normais –, mas eu já não sou o garotinho de 8 anos que aceitava tomar um sorvete e ficar falando bobagens.
Eu não gosto de conversas fiadas. Não me importo de ficar em silêncio por todos esses minutos. Não me sinto confortável de fingir que me importo, mas não imagino que algo pudesse ser diferente – não quando se trata da pessoa que literalmente trouxe você ao mundo.
Posso nunca ter amado minha mãe, mas sei que ela foi essencial na minha constituição como pessoa (além do óbvio: foi ela quem me gerou, junto com meu pai, e me entregou para o vasto universo após nove meses). Nós não temos intimidade, quase não nos vemos e conversamos apenas o essencial via mensagens de texto (o que normalmente significa que um de nós manda “oi” e o outro deixa no vácuo após todo o papo de “tudo bem? O que faz de bom?”, o que por mim está tudo bem. Conversar requer energia demais e, ultimamente, volto minhas energias para os estudos).
Depois de tantos anos afastados, não temos conversas em comum, apenas algumas novidades básicas na vida de cada família (meu irmão se casou, seu primo vai ter filhos, a maria e o joão saíram de seus antigos armários) e talvez perguntas sobre o futuro (você vai voltar para a cidade grande? Está trabalhando em um novo escritório? Tá a fim de ir comigo na sua tia próximo sábado?) e por aí vai.
Senha 47.
Eu nem acredito que já se passaram tantos minutos desde que chegamos aqui. Abandonei a ideia de colocar os fones em meus ouvidos ou até mesmo ler algo depois que minha mãe decidiu me contar sobre a gravidez (totalmente natural, segundo ela) da tia Débora – conhecida como a “lésbica” da família materna por só apresentar namoradas aos parentes e sempre ter proclamado que jamais seria mãe –, algo totalmente inesperado desde que me entendo por gente.
Apesar da “fama” da irmã de minha mãe, sei sobre seu grande “segredo” (que agora foi revelado, obviamente) desde meus 12 anos: minha tia é pansexual e me contou isso em uma tentativa de festa de aniversário que foi feita na casa dos meus avós maternos. Ela dissera que confiava em mim pois sabia que éramos parecidos – o que, basicamente, significava que eu não era heterossexual e ela já o percebera naquela época. Também me contou que nunca conhecera homens ou pessoas menos “femininas” por quem valesse a pena lutar para apresentar aos familiares (apesar de ela realmente curtir a ideia de ser mãe biológica, ainda que secretamente), e nunca fez nenhuma cena de sair de algum armário preconceituoso, então era fácil rotulá-la simplesmente de lésbica.
A carne é fraca, principalmente quando se trata de fofocas. Acabo descobrindo que o pai dessa criança é um cara por quem eu claramente adoraria me apaixonar: sua pele é parecida com a do Taylor Lautner e os músculos não são nada diferentes pelo que vejo na foto. Felizmente, o rosto do homem é muito melhor que o do grande lobo de crepúsculo. Dá para notar algumas marcas de expressão – talvez ele devesse usar algum creme anti-idade e mais protetor solar – que tornam sua face algo entre madura e bela, com olhos cor de caramelo e um cabelo que minha avó chamaria de “alternativo”: seus fios são tipo um vômito de algodão doce com arco-íris.
Em qualquer pessoa, essa combinação seria desastrosa, mas não nele. Sempre imaginei que tia Débora fosse a fim de pessoas tão exóticas quanto ela – afinal, nem todas as mulheres de meia idade tingem os cabelos das cores do arco-íris a cada mês, e raramente vemos seres humanos aos quase cinquenta anos participando de eventos adolescentes apenas pela diversão de estar perto de jovens, como em encontros de animes e kpop (sim, ela faz isso) –, mas acho que nunca pensei nela como alguém que teria filhos e uma vida quase normal.
Quase, pois seu novo amor é um ator de teatros pequenos nos arredores da cidade e adora trabalhar vendendo artes em locais inusitados, como beiras de estrada e praias. Eu o admiro demais, amaria poder fazer essas coisas que parecem tão simples e bobas e que, na verdade, fazem toda a diferença para ele. No meu caso, no entanto, eu ficaria com a parte da atuação e escolheria a dança como segundo hobby trabalhista.
Me perdi em pensamentos mais uma vez. Preciso me concentrar por alguns segundos para tentar ouvir a senha atual. Número 60, é o que escuto. Viro meus olhos rapidamente para o local de onde vem o próximo atendido e fico por alguns segundos encarando o jovem que segue ao lado do amigo até a enfermeira responsável pelas doses.
Ele se parece muito com Igor, meu melhor amigo até o primeiro ano... do ensino fundamental! Sei que devo estar imaginando coisas, pois a última vez em que tive notícias dele, Igor morava em outro município, distante daqui. De qualquer forma, o rapaz é extremamente bonito e, mesmo que não seja o garoto de quem me lembro, tenho certeza de que faria o “tipo” de grande parte das pessoas que se interessam pelo gênero masculino.
Os cabelos dele são encaracolados, no estilo bem-cuidado e super volumoso. Posso não sentir atração sexual por ninguém, mas sei reconhecer pessoas bonitas, principalmente quando são meninos, e ele certamente se encaixaria nessa categoria. Não consigo vê-lo muito bem dessa distância – talvez minha visão esteja pior, ou meus óculos estejam extremamente sujos –, mas quase consigo construir a imagem de como seria Igor nessa idade, ainda que com algumas pequenas mudanças, como o seu cabelo, que era bem curto na última vez em que nos vimos.
Acabo suspirando ao imaginar tudo isso. Esse menino estaria na minha lista de pessoas por quem eu adoraria sofrer, sabe? Ele é lindo, tem uma altura maravilhosa (principalmente considerando que eu estou firme no 1,5 m desde meus 13 anos. Eu não entendo o que aconteceu com meu corpo durante a puberdade, parece que vim com defeito, sério!), seus cabelos são incríveis e ele está acompanhado de outro amigo – o que obviamente significa que ele é uma boa pessoa, porque pessoas chatas não saem acompanhados de amigos em eventos importantes, como eu.
Minha mãe coloca a mão em meu pulso e percebo que está tentando chamar a atenção que entreguei totalmente a esse pseudo-Igor. Murmuro um pedido breve de desculpas e volto minha concentração a ela, mas acabo me distraindo outra vez quando percebo que vem aí novas histórias de fofocas familiares.
Agora ela está me contando sobre o dia em que a ovelhinha da fazenda da minha madrinha se prendeu na cerca daquele lugar. Realmente, uma tragédia, mas Dolly já está bem e mal posso esperar para ver a pequena de novo.
Nem acredito que a pequena ovelha já tem um ano. Ainda me lembro de quando a conheci, tantos meses atrás. Eu adoro esses animaizinhos, apesar de ainda morrer de medo de animais de estábulos e de fazendas. Segurei Dolly em meus braços para alimenta-la com a mamadeira após a morte de sua mãe, e posso dizer com certeza que nenhuma lembrança ao lado de dona Rebeca foi tão maravilhosa quanto essa. Acredito que ainda demorará muito tempo para algo superar a memória daquela ovelhinha.
Senha 73.
– Mãe, a senhora pode me ajudar a convencer o pai de me deixar ter um cachorro quando eu for para fora estudar? Acho que o Felix vai ficar muito deprê sem mim por perto o dia todo
A pergunta saiu de forma tão natural de meus lábios que quase nem percebi que eu realmente havia feito. Engraçado como às vezes fazemos as coisas antes de pensarmos de verdade nelas, mas eu estava curioso quanto à resposta que minha genitora poderia me dar.
– Felix não é seu gato, Antônio? Tem certeza de que é uma boa ideia, menino? Sei lá, sempre acreditei que esses animais fossem meio do contra, sabe?
Me perco por alguns segundos antes de responder a essa nova pergunta. Odeio quando me chamam por meu nome e ainda reclamo com algumas pessoas que o fazem, mas com minha mãe é diferente. Primeiro: ela raramente me chama pelo meu apelido (tudo bem que Tony não é exatamente um apelido criativo nem nada, mas ainda assim). Segundo: não temos intimidade o suficiente para que eu peça para ela me chamar de Tony ou qualquer outra coisa que não seja meu nome verdadeiro. Terceiro: eu acho que minha energia para interação social já está se esgotando, pois agora percebo que estou morrendo de preguiça de responder a todas essas perguntas.
– Ele é um gato calmo, mãe. É uma ótima ideia para ele não ficar sozinho
Respondo baixinho e dou de ombros, fechando meus olhos por alguns segundos e esperando, do fundo de meu coração, que ela deixasse para lá o papo que eu mesmo havia iniciado. Às vezes é complicado ser uma pessoa com energia social baixa, principalmente quando precisamos fingir normalidade para conversar com outros seres humanos. E a situação piora quando esse ser humano é a sua mãe, que você vê menos de uma vez por mês e que tenta de tudo para ser próxima ao filho. Deve ser por isso que Felix e eu nos damos tão bem, considerando que ele detesta grande parte dos humanos, assim como o papai aqui.
– Tudo bem, vou pensar na sua ideia. Mas você vai precisar ir acostumando os dois aos poucos, rapaz. Nada de jogar o cachorro e o gato num quarto por um dia todo e esperar que algo de bom saia de lá
Percebo o tom de humor na voz de minha mãe e até fico feliz por ela estar levando essa situação como uma brincadeira. Não que eu esteja brincando sobre querer um cãozinho, mas acho que a falta de seriedade deixa as coisas... menos complicadas para serem lidadas. Trocamos mais algumas palavras e levo minha atenção às pessoas que estão sendo atendidas. Gosto de observar o mundo e “testar” minha atração visual. Sou capaz de reconhecer pessoas bonitas  e cheirosas – especialmente quando são meninos, sou quase um rapaz homossexual, só falta sentir atração sexual e romântica por garotos, então continuo só sendo assexual e arromântico, mas com forte atração visual para meninos, é isso –, ainda que isso não seja nem perto do que às vezes eu gostaria de ter com outras pessoas.